sábado, 19 de julho de 2008

Crente, álcool e volante

Introdução. O livre arbítrio é considerado o maior de todos os bens do homem. Também foi ao longo da história e continua sendo em nossos dias, motivo para a violação de inúmeros direitos outros, razão pela qual tem o seu exercício disciplinado em todos os âmbitos da vida em sociedade, com o estabelecimento de sanções para aqueles que extrapolam as fronteiras do admitido. É, justamente em seu nome, que se desenvolve o debate em relação à Lei Federal nº. 11.705, de 19 de junho de 2008, editada com o objetivo de “inibir o consumo de bebida alcoólica por condutor de veículo automotor” e ao Decreto nº. 6.488 da mesma data, que a regulamenta. Nesse sentido, entendemos ser oportuno fazer uma apreciação nas relações envolvendo a religião, o álcool e a lei, objetivando estabelecer encaminhamentos que atendam às necessidades daqueles que desejam sincronizar suas condutas por entre os vieses relacionados com essas três dimensões.

1. A liberdade cristã para o uso do álcool. Não se discute que somos livres, como cristãos, para definirmos aquilo que é conveniente ou não para a nossa vida, evidentemente, arcando com as devidas conseqüências (1 Co 6:12; 10:23; 2 Co 3:17). Por outro lado, somos orientados à cautela, para que não sejamos envolvidos em escândalos e maus exemplos (1 Co 8:9), em abusos (Gl 5:13; 1 Pe 2:16), em contradições (1 Co 10:29; 2 Tm 2:15) e em situações indesejadas (Gl 5:1).
Não posso deixar de reconhecer que o uso do álcool é lícito para todas as pessoas, inclusive para o crente, assim como todas as demais coisas. Paulo aconselhou que Timóteo usasse “um pouco de vinho”, por motivos de saúde. O que se discute não é a licitude, mas o mau uso que se faz delas (1 Tm 4:4; Tg 4:3), principalmente o excesso (Pv 23:20-21). Temos recomendação expressa para não nos associarmos aos “irmãos beberrões”, os quais devem primeiro aprender as regras da disciplina, do controle e do domínio próprio e, evidentemente, se submeter a elas, para depois terem condições de serem aceitos para conviverem em sociedade (1 Co 5:1-13; 9:25-27; Gl 5:22-23; 2 Pe 1:3-11).
É de destacar que, como diversas outras substâncias psicoativas, o álcool também é utilizado para fins benéficos, inclusive medicinais. Ele é uma espécie de solvente. Em alguns casos também é utilizado como conservante[i]. São muitos os medicamentos que têm álcool em sua composição. No Brasil, a ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária tem regulamentado os níveis de etanol (álcool etílico) para as fórmulas de complexos polivitamínicos que tenham em sua composição as vitaminas A, E, K e D que precisam de álcool para serem dissolvidas[ii]. Também tem proibido o seu uso em tantos outros medicamentos. Cada caso é tratado como um caso.

2. A liberdade religiosa e a obediência às leis do país. A lei é um limitador da liberdade para o povo de Deus. Somos orientados à obediência às autoridades e ao governo de nosso país (Rm 7:1; 13:1-7; Tt 3:1; 1 Pe 2:13-17). Somos, inclusive, ensinados a orar, suplicar e interceder pelas autoridades e governantes para que possamos viver e paz e com respeito. É certo que, num país democrático como o Brasil, as decisões de governo são oficializadas por meio de leis, em sentido lato, ou seja, por atos com força normativa como, por exemplo as leis, os decretos, as portarias, as instruções normativas, as resoluções e etc.
É de destacar que a Constituição Federal Brasileira nos concede a liberdade religiosa em seu art. 5º., inciso VI. Diz ali: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e, garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Todavia essa liberdade tem limites. A própria CF/88, ainda no art. 5º., inciso VIII diz que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (grifo nosso).
Destacam-se ainda aos decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria. Segundo a Corte Suprema “a Constituição Federal assegura o livre exercício do culto religioso, enquanto não forem contrários à ordem, tranqüilidade e sossego públicos, bem como compatíveis com os bons costumes.” (STF. RTJ 51/344). Diz ainda que o “livre exercício dos cultos religiosos, assegurado pela Constituição, não implica na tolerância de ofensa aos bons costumes, na relegação de disposições do Código Penal.” (STF. RMS 16857/ MG; Rel. Min. Eloy da Rocha; DJ. 24.10.1969).
Dessa forma, fica evidenciado que o crente, tanto por orientação religiosa doutrinária específica, quanto por determinação expressa no ordenamento pátrio, não tem liberdade para infringir a lei, sendo que esta deve fixar a obrigação de prestação alternativa, por expresso comando constitucional, em substituição às atividades que contrariarem as convicções filosóficas e de crença dos religiosos.

3. A nova lei de trânsito. O trânsito no Brasil é disciplinado pelo Código de Trânsito Brasileiro, instituído pela Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997 e suas diversas alterações. A última destas é a Lei nº. 11.705, regulamentada pelo Decreto nº. 6.488, ambos de 19 de junho de 2008. Essa nova legislação tem “a finalidade de estabelecer alcoolemia 0 (zero) e de impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do álcool” (art. 1º.).
A referida lei proíbe a venda de bebidas alcoólicas à margem das rodovias federais (art. 2º.) e em terrenos contíguos à sua faixa de domínio (art. 3º.), impondo multas de R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais) e R$ 300,00 (trezentos reais), respectivamente, para os infratores.
Além disso, altera as sanções administrativas e penais relacionadas com os delitos de trânsito. Segundo art. 165 do CTB, “Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência” é infração gravíssima que acarretará, além da multa, a suspensão do direito de dirigir por doze meses e a retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado para seu recolhimento.
Já o art. 276, regulamentado pelo Decreto 6.488 estabelece que a concentração de álcool por litro de sangue para a aplicação das sanções administrativas do CTB será de “duas decigramas por litro de sangue para todos os casos”, ou seja, 20 miligramas (20 mg/l).
Por seu turno, o art. 306, altera o tipo penal e estabelece que sofrerá a sanção nele estabelecida de “detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”, aquele que “conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.
A prova pode ser conseguida por exame de sangue ou pelo popular bafômetro. É o que estabelece o art. 277 do CTB. O condutor sob suspeita de estar dirigindo sob influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame, que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN – Conselho Nacional de Trânsito permitam certificar o seu estado.
É de destacar que o § 3º., deste art. 277 autoriza a aplicação das sanções administrativas ao condutor que se recusar a submeter aos procedimentos previstos. Já em relação aos crimes, o mesmo não poderá acontecer, uma vez que a nossa jurisprudência reconhece ao acusado o direito de “não produzir prova contra si”, ou seja, ninguém estará obrigado a ceder sangue para o exame laboratorial, nem a soprar no aparelho alveolar (bafômetro). Isso, com certeza dificultará a aplicação da lei, uma vez que o tipo penal requer a prova da “concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.
Segundo Aldo de Campos Costa, “a partir da redação que lhe foi dada pela Lei 11.705/08, o artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro se tornou letra morta”[iii].
Nessa linha de raciocínio, pouco adiantou ao legislador deixar de considerar os benefícios da legislação especial nos “crimes de trânsito de lesão corporal culposa”, quando o condutor estiver “sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”, uma vez que somente poderá provar essa situação por meio dos procedimentos já mencionados, aos quais o condutor não está obrigado a se submeter, ainda mais quando é o caso de perder benefícios.
Por último, apenas a título de registro, a Lei 11.705 estabelece em seu art. 6º., que serão consideradas bebidas alcoólicas “as bebidas potáveis que contenham álcool em sua composição, com grau de concentração igual ou superior a meio grau Gay-Lussac”, ou seja, 0,5 GL.

Conclusão. A nova legislação aperta o cerco por um lado e bambeia pelo outro. É incompreensível, por exemplo, a alteração do art. 306 do CTB que vinculou um limite de concentração alcoólica para o condutor, uma vez que dificilmente as autoridades poderão provar essa condição, dada que a mesma somente ocorrerá através da concordância do condutor. Quanto ao agravamento das sanções administrativas, trata-se de uma medida salutar, uma vez que a dor mais sofrida pelo brasileiro é aquela que lhe atinge o bolso.
Quanto aos religiosos, nada mudou. Continuamos tendo liberdade para praticar os atos da vida civil, desde que o façamos com autonomia e responsabilidade. Ninguém está autorizado a infringir as leis do país ou as doutrinas bíblicas sob o escudo de ter liberdade religiosa. Se alguma pessoa se julga prejudicado pela lei, que envide esforços junto aos seus representantes políticos para alterá-la. Enquanto isso não acontece, todos devem obedecer aos seus comandos, sob pena de sofrer as conseqüências por ela estabelecidas.
“Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás o louvor dela” (Rm 13:3). Essa é a única forma de combinar a prática da fé, com o uso do álcool e o exercício da direção automotora.
Que Deus abençoe a todos.
___________
NOTAS:
[i] Cf. http://www.weleda.com.br/perguntas_frequentes/ : O álcool é conservante e dispensa a adição de algum produto químico que poderia alterar a ação do remédio ou trazer danos à saúde do paciente. Além disso, soluções alcoólicas mantêm-se livres de microorganismos por mais tempo.
[ii] Cf. Resolução RE nº 1, de 25 de janeiro de 2002, ANVISA. Ementa: Mantém a proibição da presença de etanol em todos os produtos fortificantes, estimulantes de apetite e crescimento, e complementos de ferro conforme disposto na Resolução RE n°543/01 e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 19/07/2008.
[iii] Costa. Ado de Campos. Álcool zero. Nova lei beneficia acusados de embriaguez ao volante. Disponível em: . Acesso em 19/06/2008.



3 comentários:

Rosangela Lins Almeida disse...

É sempre bom analisar os dois lados da moeda. Este artigo o faz com bastante clareza e moderação. O Senhor Deus nos deu a Sua lei maior, a Bíblia, visando preservar a nossa integridade espiritual, física e moral. Contudo, como o irmão bem colocou, deixou ao homem o livre arbítrio. Oremos para que o Senhor nos de sabedoria para exercer essa liberdade perfeita e que sejamos luzes, exemplos e não infratores.

Anônimo disse...

O artigo ficou excelente! é muito bom verificar que temas como esse podem ser abordados tanto no aspecto religioso, o texto ficou bastante claro e de ótima qualidade. E a questão do livre arbítrio é a medida para toda a conduta do cristão.

No que se refere a "loucura" do novo art. 306 trazer um percentual expresso, o jurista Luiz Flávio Gomes em recente palestra, vinculou que já foram adotadas algumas medidas, a fim de alterar tal dispositivo, uma vez que como bem sabemos o indíve de alcoolemia em determinados indivíduos variam de acordo com seu organismo.

Ao menos podemos nos confortar sabendo que em termos estatísticos o indíce de mortes e acidentes têm sofrido grande queda, após a edição de tais inovações.

Keit - Primavera do Leste/MT

Prof. Izaias Resplandes disse...

Olá, minhas queridas irmãs. Estou feliz pelos comentários de vocês ao texto ora apresentado, os quais agregam valor e autoridade ao que foi dito de forma singular. Um texto escrito por várias mãos amplia bastante o seu valor. Quisera que outros leitores seguissem esse exemplo e que se manifestassem sobre os temas que são postados. Assim teríamos um blog mais dinâmico. Abraços a vocês.